Levantamento cruzou dados do IBGE e do governo federal e revela disparidades gritantes na composição familiar declarada por beneficiários do programa
Um novo levantamento da empresa DataBrasil, com base em informações do Ministério do Desenvolvimento Social e dados populacionais do IBGE, identificou indícios de fraude em massa no principal programa de transferência de renda do país. Segundo a análise, ao menos 1,4 milhão de famílias brasileiras podem estar omitindo informações sobre a composição familiar para continuar recebendo o Bolsa Família — muitas delas com rendimentos incompatíveis com os critérios exigidos por lei.
O mecanismo mais recorrente é a omissão proposital de um dos cônjuges no Cadastro Único. A manobra costuma ocorrer quando o pai da criança possui vínculo empregatício formal — o que, se declarado, poderia impedir a concessão do benefício à mãe. A solução encontrada por milhares de famílias: alegar que a mãe vive sozinha com os filhos, mesmo morando sob o mesmo teto com o companheiro.
A prática, além de ilegal, afeta diretamente os cofres públicos e distorce o objetivo original do programa, que é atender famílias em real situação de vulnerabilidade. A fraude, neste caso, configura crime de falsidade ideológica e pode resultar em sanções administrativas e judiciais.
A discrepância entre o número real de famílias monoparentais e os dados declarados ao programa salta aos olhos. Em Guaribas, no interior do Piauí — município simbólico por ter sido o ponto de partida do Bolsa Família ainda no governo Lula — o IBGE registrou 151 lares compostos por apenas um dos pais. No entanto, no sistema do programa social, 617 famílias se declararam dentro desse perfil. São mais de 460 casos suspeitos só ali.
Esse padrão se repete em milhares de cidades. Das 5.571 cidades brasileiras, 2.134 apresentam algum grau de disparidade entre os dados do Censo e as informações declaradas pelos beneficiários. Em números absolutos, Manaus lidera o ranking nacional. Lá, o IBGE contabiliza 169.721 domicílios monoparentais. No sistema do Bolsa Família, esse número salta para 184.772 — um excesso de mais de 15 mil registros.
Proporcionalmente, o caso mais alarmante ocorre em Pracuúba, no Amapá. O município possui apenas 157 residências com apenas um dos pais, segundo o IBGE. Mesmo assim, mais de 800 famílias se autodeclaram com essa composição para receber o benefício.
A análise da DataBrasil também identificou outra estratégia de burlar o sistema: casais que, mesmo vivendo juntos, se registram como se morassem separados. Dessa maneira, tanto o homem quanto a mulher se cadastram individualmente, como se fossem famílias unipessoais — aumentando artificialmente o número de beneficiários e o volume de recursos repassados.
De acordo com a legislação vigente (Lei 14.601/2023), têm direito ao Bolsa Família as famílias com renda per capita de até R$ 218. No entanto, a presença de qualquer fonte formal de renda — como um salário mínimo, aposentadoria ou pensão — já pode ser suficiente para inviabilizar o acesso ao programa. O levantamento aponta que, em muitos dos casos investigados, há registros de vínculo empregatício formal ou recebimento de benefício previdenciário na mesma residência.
“Em comunidades pequenas, onde há controle social mais efetivo e conhecimento mútuo entre os moradores, essas distorções são ainda mais visíveis. Em muitos casos, o que ocorre é conivência ou omissão por parte de quem deveria fiscalizar”, avaliou um técnico da área de assistência social, sob condição de anonimato.
Os dados utilizados no estudo foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e têm como base o mês de março de 2025. O governo federal ainda não se manifestou oficialmente sobre o levantamento, mas o Ministério do Desenvolvimento Social já foi notificado.
A expectativa, agora, é que o cruzamento de bases de dados — como o Cadastro Único, o eSocial e registros do INSS — seja intensificado para coibir práticas que fragilizam o programa e retiram o benefício de quem realmente precisa.