Como muito bem referiram Liziane Angelotti Meira e Daniela Floriano em “Vamos falar sobre classificação fiscal de mercadorias?” [1], “no meio jurídico brasileiro, […] é verificável certo descaso científico pelo tema [da classificação fiscal de mercadorias]”. “Muitas vezes relegado a uma tarefa automática ou menos importante desempenhada por atores diversos dos intelectuais operadores do direito, apoiados na incipiente literatura, que se prestava em boa medida a reproduzir, ipsis litteris, a legislação. No mesmo caminho, a produção jurisprudencial, não obstante notável evolução, ainda reflete alguma desconsideração intelectual.”
Em sendo assim, na esteira da observação das ilustradas articulistas, o presente texto pretende enfatizar a necessidade de se reconhecer o caráter estritamente jurídico do método para a classificação fiscal de mercadorias.
Em primeiro lugar, destaque-se a relevância desse tema na medida em que a definição da alíquota do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e dos Impostos de Importação e de Exportação (Impostos Aduaneiros), bem como a concessão de regimes fiscais diferenciados e até benefícios fiscais, dependem da prévia e adequada classificação fiscal das mercadorias e do seu subsequente enquadramento em extensas tabelas que contêm, literalmente, milhares de itens e subitens. [2]
À primeira vista, pode parecer que, a partir da descrição técnica de uma mercadoria fornecida por um especialista, basta examinar a Tipi ou a Tabela da TEC em busca da descrição que aparentemente corresponda mais exatamente para fins da sua classificação fiscal. Esse é, todavia, um procedimento completamente equivocado à luz das regras que regem o Sistema Harmonizado de Classificação de Mercadorias, como se passa a explicar a seguir.
O Sistema Harmonizado de Classificação de Mercadorias é um sistema internacional que visa padronizar o tratamento das mercadorias para os fins do comércio internacional em decorrência da Convenção Internacional de Bruxelas, de 14 de junho de 1983, subscrita pela República Federativa do Brasil e introduzida em nosso ordenamento pelo Decreto n° 97.409/1988, com força de lei ordinária.
Por força dessa convenção, todas as mercadorias sujeitas ao comércio internacional pelos países signatários devem ser classificadas observando a seguinte estrutura mínima:
– 00(1)00(2)00(3), sendo:
(1) Capítulo (2 primeiros dígitos do SH);
(2) Posição (4 primeiros dígitos do SH);
(3) Subposição (6 primeiros dígitos do SH).
Não obstante, a Convenção de Bruxelas também autoriza a adoção de itens e subitens por exigências regionais, o que, de resto, foi adotado no âmbito do Mercosul, sendo que a chamada Nomenclatura Comum do Mercosul – NCM obedece à seguinte estrutura:
– 00(1)00(2)00(3)0(4)0(5), sendo:
(1) Capítulo (2 primeiros dígitos do SH);
(2) Posição (4 primeiros dígitos do SH);
(3) Subposição (6 primeiros dígitos do SH);
(4) Item (7º dígito da NCM);
(5) Subitem (8º dígito da NCM).
No entanto, mais do que padronizar a forma como devem ser apresentados os códigos de classificação das mercadorias, a Convenção de Bruxelas (recorde-se, acolhida no Brasil com força de lei ordinária) dispôs sobre o método para se proceder à classificação de uma mercadoria, que envolve a análise das posições e subposições do Sistema Harmonizado e de seus respectivos códigos numéricos, bem como das Notas de Seção, de Capítulo e de Subposição, além das Regras Gerais para a Interpretação do Sistema Harmonizado (RGI), constantes do Anexo à própria Convenção, que, conforme o seu art. 2º, deve ser considerado parte integrante dela.
Reprodução
Ainda, merecem atenção as Normas de Interpretação do Sistema Harmonizado (Nesh), que “constituem elemento subsidiário de caráter fundamental para a correta interpretação do conteúdo das posições e subposições, bem como das Notas de Seção, Capítulo, posições e subposições da Nomenclatura do Sistema Harmonizado, anexas à Convenção Internacional de mesmo nome”, de acordo com o parágrafo único do artigo 1º do Decreto nº 435/1992.
Além disso, também são vinculantes as classificações das mercadorias contidas nos Pareceres da Organização Mundial das Aduanas (OMA), que são traduzidos e internalizados por ato do Secretário da Receita Federal. [3] Já as Soluções de Consulta e Soluções de Divergência proferidas nos termos do artigo 33 da Instrução Normativa RFB nº 2.057/2021[4], são vinculantes para a própria Receita e “respaldam o sujeito passivo que as aplicar, ainda que não seja o respectivo consulente, desde que a mercadoria se enquadre nas características descritas na ementa, sem prejuízo da verificação de seu efetivo enquadramento pela autoridade fiscal em procedimento de fiscalização”.
O que se quer desde logo ressaltar é que, na verdade, a atividade, em si, da classificação de mercadorias é uma atividade de interpretação jurídica, não obstante seja feita a partir de conhecimentos técnicos especializados quanto à caracterização de cada mercadoria.
Com efeito, confira-se, numa primeira aproximação, o teor das Regras Gerais para a Interpretação do Sistema Harmonizado (RGI):
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Os títulos das Seções, Capítulos e Subcapítulos têm apenas valor indicativo. Para os efeitos legais, a classificação é determinada pelos textos das posições e das Notas de Seção e de Capítulo e, desde que não sejam contrárias aos textos das referidas posições e Notas, pelas Regras seguintes:
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a) Qualquer referência a um artigo em determinada posição abrange esse artigo mesmo incompleto ou inacabado, desde que apresente, no estado em que se encontra, as características essenciais do artigo completo ou acabado. Abrange igualmente o artigo completo ou acabado, ou como tal considerado nos termos das disposições precedentes, mesmo que se apresente desmontado ou por montar. b) Qualquer referência a uma matéria em determinada posição diz respeito a essa matéria, quer em estado puro, quer misturada ou associada a outras matérias. Da mesma forma, qualquer referência a obras de uma matéria determinada abrange as obras constituídas inteira ou parcialmente por essa matéria. A classificação destes produtos misturados ou artigos compostos efetua‐se conforme os princípios enunciados na Regra 3.
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Quando pareça que a mercadoria pode classificar‐se em duas ou mais posições por aplicação da Regra 2 b) ou por qualquer outra razão, a classificação deve efetuar‐se da forma seguinte: a) A posição mais específica prevalece sobre as mais genéricas. Todavia, quando duas ou mais posições se refiram, cada uma delas, a apenas uma parte das matérias constitutivas de um produto misturado ou de um artigo composto, ou a apenas um dos componentes de sortidos acondicionados para venda a retalho, tais posições devem considerar‐se, em relação a esses produtos ou artigos, como igualmente específicas, ainda que uma delas apresente uma descrição mais precisa ou completa da mercadoria. b) Os produtos misturados, as obras compostas de matérias diferentes ou constituídas pela reunião de artigos diferentes e as mercadorias apresentadas em sortidos acondicionados para venda a retalho, cuja classificação não se possa efetuar pela aplicação da Regra 3 a), classificam‐se pela matéria ou artigo que lhes confira a característica essencial, quando for possível realizar esta determinação. c) Nos casos em que as Regras 3 a) e 3 b) não permitam efetuar a classificação, a mercadoria classifica‐se na posição situada em último lugar na ordem numérica, dentre as suscetíveis de validamente se tomarem em consideração.
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As mercadorias que não possam ser classificadas por aplicação das Regras acima enunciadas classificam‐se na posição correspondente aos artigos mais semelhantes.
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Além das disposições precedentes, as mercadorias abaixo mencionadas estão sujeitas às Regras seguintes: a) Os estojos para câmeras fotográficas, instrumentos musicais, armas, instrumentos de desenho, joias e artigos semelhantes, especialmente fabricados para conterem um artigo determinado ou um sortido, e suscetíveis de um uso prolongado, quando apresentados com os artigos a que se destinam, classificam‐se com estes últimos, desde que sejam do tipo normalmente vendido com tais artigos. Esta Regra, todavia, não diz respeito aos artigos que confiram ao conjunto a sua característica essencial. b) Sem prejuízo do disposto na Regra 5 a), as embalagens que contenham mercadorias classificam‐se com estas últimas quando sejam do tipo normalmente utilizado para o seu acondicionamento. Todavia, esta disposição não é obrigatória quando as embalagens sejam claramente suscetíveis de utilização repetida.
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A classificação de mercadorias nas subposições de uma mesma posição é determinada, para efeitos legais, pelos textos dessas subposições e das Notas de subposição respectivas, bem como, mutatis mutandis, pelas Regras precedentes, entendendo‐se que apenas são comparáveis subposições do mesmo nível. Na acepção da presente Regra, as Notas de Seção e de Capítulo são também aplicáveis, salvo disposições em contrário.
Como se pode ver de um rápido exame, embora elencadas em número de 6, trata-se, na verdade, de um conjunto maior de regras e que denotam uma complexidade bastante grande.
Sem a menor pretensão de esgotar o assunto, chama-se a atenção para a primeira e mais importante das regras que é a que diz que “Os títulos das Seções, Capítulos e Subcapítulos têm apenas valor indicativo. Para os efeitos legais, a classificação é determinada pelos textos das Posições e das Notas de Seção e de Capítulo […]”
Por outro lado, importante combinar essa regra, RGI 1, com a RGI 6, consoante a qual “a classificação de mercadorias nas subposições de uma mesma posição é determinada, para efeitos legais, pelos textos dessas subposições e das Notas de Subposição respectivas, assim como, ‘mutatis mutandis’, pelas Regras precedentes, entendendo-se que apenas são comparáveis subposições do mesmo nível […]”.
Dessarte, em realidade, existe uma hierarquia entre posições, subposições, itens e subitens — reitere-se, só sendo possível comparar posições com outras posições, subposições com outras subposições e assim por diante.
Assim, o procedimento antes referido de buscar, entre todas as descrições contidas na TipiI ou na TEC, aquela que pareça ser mais específica para a mercadoria cuja classificação se almeja, está simplesmente errado. O correto é, primeiro, se buscar o enquadramento da mercadoria na posição que seja mais específica. Uma vez definida a posição, aí sim, buscar dentre as subposições, itens e subitens, comparando-os com outras descrições de mesmo nível.
Ademais, esse procedimento simplório de tentar apenas enquadrar uma mercadoria em algum item ou subitem que pareça ser o mais específico, como antes dito, está errado, na verdade, por desprezar todo o cipoal normativo que envolve não só as 6 RGI, como os textos das Posições, as Notas de Seção, de Capítulo e de Subposição, as Nesh, os pareceres da OMA e as Soluções de Consulta e Divergência da própria Receita Federal.
Como se vê, a classificação fiscal de mercadorias em si é uma atividade estritamente jurídica, apesar de complexa, eis que envolve o exame de extenso arcabouço normativo, no mais das vezes redigido em linguagem de tratados internacionais, distinta da usualmente utilizada pelo Direito interno. A complexidade, entretanto, não exime o intérprete de sua função de aplicar as normas vigentes.
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[1] Disponível em: Acesso em 16-06-2024.
[2] Trata-se, respectivamente, das conhecidas Tabela do IPI – TIPI, atualmente anexa ao Dec.nº 11.158/2022 e Tabela da Tarifa Externa do Mercosul – TEC, esta adotada em decorrência do Tratado de Assunção, de 1991, e periodicamente revisada por resoluções da CAMEX. Ambas decorrem da chamada NCM – Nomenclatura Comum do Mercosul.
[3] Atualmente, constam na Instrução Normativa SRF nº 2.171, de 02-01-2024.
[4] Vide, também, a Portaria RFB nº 1.921/2017, que instituiu o Centro de Classificação Fiscal de Mercadorias (Ceclam).